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  • Corrida global por chips redefine economia, tecnologia e poder no século XXI
    A corrida pelos semicondutores virou peça central da disputa tecnológica contemporânea. Entre todas as nações que tentam garantir seu espaço nessa arena, nenhuma avança tão rapidamente quanto a China. A pauta da autossuficiência tecnológica virou prioridade máxima em Pequim, e o setor de chips, antes um ponto vulnerável, transformou-se no centro de uma estratégia nacional de longo prazo.  Thiago de Aragão, analista político Hoje, começa a ficar claro que a China está perigosamente próxima de alcançar independência em áreas que eram quase monopólio dos Estados Unidos e de seus aliados. Isso mexe profundamente com o equilíbrio geopolítico global, com as grandes empresas do setor e com o futuro da própria inovação. Até poucos anos atrás, a China importava praticamente tudo o que havia de sofisticado em semicondutores. Dependia de fornecedores estrangeiros para inteligência artificial, supercomputação e boa parte da indústria moderna. Mas decidiu inverter essa lógica. Por meio de políticas industriais agressivas, investimentos estatais bilionários e incentivos fiscais capazes de remodelar cidades inteiras, o país passou a construir uma cadeia de semicondutores completa, capaz de operar desde o design até a fabricação e o encapsulamento. Não foi um movimento tímido. A China atraiu engenheiros de outros países, formou centenas de milhares de profissionais qualificados, ergueu parques industriais dedicados exclusivamente ao setor e começou a desenvolver seus próprios equipamentos e softwares. Ainda há setores sensíveis em que o país não alcançou a liderança, como a litografia ultravioleta extrema, mas o avanço foi tão rápido que o atraso deixou de ser determinante. A Huawei, por exemplo, conseguiu produzir um smartphone com chip nacional de 7 nanômetros, algo que poucos analistas consideravam possível em tão pouco tempo. Pequim persegue a meta de autossuficiência não como retórica, mas como projeto de Estado de longo prazo. Esse avanço chinês ocorre ao mesmo tempo em que a disputa geopolítica entre China e Estados Unidos atinge temperaturas inéditas. Para os americanos, chips avançados deixaram de ser apenas componentes industriais e passaram a ser tratados como ativos fundamentais de segurança nacional. A resposta de Washington foi endurecer as regras de exportação, restringindo profundamente o acesso chinês aos semicondutores mais sofisticados e às máquinas usadas para produzi-los. A China, por sua vez, lê essas restrições como tentativa de contenção e responde reforçando sua própria musculatura industrial. Ao limitar exportações de minerais estratégicos e ao aumentar a escala de investimentos internos, Pequim sinaliza que está preparada para travar sua própria batalha assimétrica. O que antes era uma disputa essencialmente econômica virou uma disputa sistêmica entre dois modelos de poder. Impacto nos EUA Nesse ambiente, as gigantes do setor começaram a sentir impactos muito concretos. A Nvidia foi a mais atingida. Por anos, dominou o mercado chinês de chips de inteligência artificial. Quando os Estados Unidos restringiram a exportação dos modelos mais avançados, a empresa viu sua participação ser praticamente zerada no maior mercado de IA do planeta. Tentou adaptar-se criando versões menos potentes de seus chips, mas até essas passaram a enfrentar risco de bloqueio. Ao mesmo tempo, empresas chinesas se posicionaram para ocupar o espaço deixado. A Huawei avançou agressivamente com seus próprios chips de IA e passou a abastecer grande parte dos projetos domésticos. Startups chinesas ganharam impulso imediato, amparadas por um governo disposto a substituição tecnológica acelerada. Para a AMD e a Intel, o cenário segue a mesma linha. A exigência de que data centers ligados ao Estado utilizem apenas chips nacionais reduziu as perspectivas de crescimento dessas empresas e deixou claro que o impulso à autossuficiência chinesa não será revertido. Mesmo em PCs e servidores comuns, cresce a aposta chinesa em projetar e fabricar suas próprias CPUs e GPUs, erosão lenta porém contínua do espaço das fabricantes americanas. A Qualcomm enfrenta um tipo diferente de vulnerabilidade. Quase metade de sua receita global depende do ecossistema chinês de smartphones. Se a China consolidar produção própria de chips móveis em escala industrial, e se empresas como a Huawei retomarem posição dominante nas redes 5G e nos aparelhos premium, a Qualcomm enfrenta o risco real de perder um de seus pilares de receita. Revisão de estratégias Enquanto tudo isso acontece, o resto do mundo tenta reagir. Os Estados Unidos lançaram o CHIPS Act para trazer fábricas ao território nacional e fortalecer sua indústria. A Europa adotou suas próprias medidas, tentando recuperar relevância num setor que abandonou décadas atrás. Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Índia entraram na disputa com incentivos fiscais, diplomacia tecnológica e promessas de redução de dependência externa. Pela primeira vez em décadas, países passaram a reorganizar cadeias de suprimento não pelo critério econômico clássico, mas por alinhamento político e percepção de risco. A lógica é simples: amigos produzem com amigos. O preço é a perda de eficiência e o aumento dos custos. O ganho é a sensação, ainda que relativa, de segurança estratégica. Mesmo assim, fragmentar um sistema global tão integrado quanto o dos semicondutores significa mexer com toda a estrutura da economia digital. As cadeias que antes conectavam Japão, Taiwan, Holanda, China e Estados Unidos passam agora a se reconfigurar em blocos paralelos, fragmentando o que já foi o setor mais globalizado do planeta. É um processo lento, caro e turbulento, mas inevitável à medida que as tensões aumentam. Avanço chinês Tudo isso mostra que o avanço chinês na fabricação de semicondutores não é um fato isolado. Ele redefine mercados, geopolítica e modelos de desenvolvimento. Empresas como Nvidia, AMD, Intel e Qualcomm percebem que, mesmo sendo líderes históricas, perderam um mercado onde o jogo mudou de regras. Países percebem que o fluxo de tecnologia deixou de ser neutro e se tornou arma estratégica. Consumidores perceberão, nos próximos anos, que existem tecnologias que só estarão disponíveis em determinados blocos, enquanto outros seguirão caminhos diferentes. A história ainda está sendo escrita, e ainda é cedo para dizer quem terá a vantagem definitiva. Mas uma coisa é clara: a disputa por chips é hoje a disputa pelo controle do futuro digital, da inteligência artificial, da computação avançada, da defesa e de tudo que depende de processamento. A China está acelerando, e o resto do mundo precisa decidir se corre junto, se cria obstáculos ou se tenta reinventar o jogo. O século XXI será escrito, em grande parte, por quem dominar essa indústria. E esse domínio já não está tão concentrado quanto esteve no passado recente.
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  • Trump, Mamdani e a política do deboche
    Ao rir de ser chamado de “fascista”, Trump esvaziou a crítica e reafirmou a lógica em que política e entretenimento se confundem – e em que a ameaça autoritária avança sob a capa da piada. Thomás Zicman de Barros, analista político Na última sexta-feira, 21 de novembro, assistimos a uma cena que sintetiza muito do que significa viver numa era em que a extrema direita aprendeu a rir de tudo, inclusive do próprio fascismo. O prefeito-eleito de Nova York, Zohran Mamdani, viajou a Washington para seu primeiro encontro com o presidente Donald Trump. Ao final, já diante da imprensa, uma jornalista lembrou que Mamdani o chamara de “fascista”. A reação de Trump, risonho e zombeteiro, revelava algo profundo: a capacidade da extrema direita de converter a política em entretenimento e de usar o humor como arma para neutralizar qualquer crítica. Há algum tempo, venho insistindo que a extrema direita conseguiu monopolizar a ideia de transgressão. No plano das promessas, a transgressão aparece como ruptura do possível: a capacidade de imaginar outro mundo, ainda que distópico, mas diferente do presente. É uma ironia da história que seja justamente a extrema direita, com seu projeto regressivo, quem hoje ofereça a fantasia de transformação. Já o campo democrático se retraiu. Em vez de transformar a democracia, limita-se a defender a cidadela da democracia liberal, sem encarar seus próprios desfuncionamentos, sem reconhecer que muitos dos “bárbaros” à sua porta são, na verdade, produtos das falhas estruturais dessa mesma fortaleza sitiada. Esse desequilíbrio também tem um lado teatral. Enquanto candidatos democráticos se apresentam como impecavelmente comportados, a extrema direita assume a rebeldia: gestos provocadores, grosseria, insultos, rompimentos deliberados das regras de civilidade. Trump domina esse repertório: interrompe jornalistas, humilha adversários, testa tabus e observa o que permanece de pé. Usa palavrões, insinuações racistas, piadas misóginas. Tudo isso encenado diante das câmeras para conquistar atenção, impor seu discurso. Zohran Mamdani também transgride, mas em outro registro. Imigrante, muçulmano, eleito por uma coalizão jovem e diversa, ele rompeu com normas do establishment ao driblar a mídia tradicional e mobilizar redes sociais para amplificar vozes que geralmente permanecem à margem da política. Sua transgressão é inclusiva: abre a política a novos atores, expande quem pode ser ouvido. É justamente o contrário da transgressão de Trump, que reanima velhas hierarquias, revive preconceitos e devolve centralidade a grupos que haviam sido empurrados ao subterrâneo da política. É por isso que o momento do “fascista” se tornou tão revelador. Ao ser questionado sobre declarações antigas, Mamdani tentou responder com polidez, contextualizando. Trump o interrompeu, rindo, e sugeriu que ele simplesmente dissesse “sim”. Brincou com a acusação. Mamdani, visivelmente desconfortável, sorriu sem graça. Trump, satisfeito, insistiu que era mais simples assim e que ele não se importava. O presidente, que não gosta de capachos, disse ainda que via em Mamdani um líder “promissor”. Toda a cena teve algo de cômico. Mas é aí que mora o perigo – e a esperteza de Trump. Tanto Trump quanto Mamdani usam do humor, mas Trump o usa de uma forma específica, típica da extrema direita. Ele encarna como poucos o que a pesquisadora brasileira Paula Diehl chama de “politainment”, essa fusão entre política e entretenimento que embaralha a fronteira entre realidade e ficção, entre o sério e a brincadeira. Como observa a produtora cultural Alessandra Orofino, trata-se de um humor ambíguo, que permite flertar com discursos autoritários sem nunca assumi-los frontalmente. É o mesmo mecanismo que vimos no gesto nazista de Elon Musk, seguido do contra-ataque de que seus críticos “estão vendo coisa onde não tem”. É um grande jogo de “apito de cachorro” no qual quem precisa entender, entende, e quem denuncia vira o chato que não sabe rir. O riso, aqui, não é inocente: é estratégia. Ao rir da acusação de fascismo, Trump desarma a palavra, esvazia seu peso, dissolve sua gravidade num espetáculo farsesco. E, no entanto, a última década mostrou que o perigo é real: a extrema direita cresceu atacando imigrantes, precarizando direitos, corroendo garantias democráticas, limitando liberdades reprodutivas, estimulando a homofobia e protegendo privilégios econômicos consolidados. Rir disso tudo é contribuir para a normalização do intolerável. O encontro entre Mamdani e Trump simbolizou o contraste entre dois outsiders que caminham em direções opostas. A política exige realismo, e o prefeito de Nova York precisa manter canais abertos com o presidente, sobretudo se pretende avançar uma agenda de reformas profundas. Mas é preciso evitar a acomodação. Nas fotos oficiais do encontro, Trump aparece rindo, satisfeito consigo mesmo. Já Mamdani, habitualmente expansivo, aparece contido, quase sério. Talvez tenha sido melhor assim. Porque rir diante do fascismo, mesmo em sua versão farsesca, é arriscar-se a rir com ele, e dissolver a fronteira entre farsa e tragédia.
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  • Fim do shutdown deixa clima de "ressaca institucional" em Washington
    O fim do shutdown caiu sobre Washington como aquele momento em que as luzes da festa acendem antes da hora. Todo mundo tenta organizar o próprio discurso, improvisar uma narrativa de vitória e mostrar alguma musculatura política, mas o clima geral é de ressaca institucional. A máquina pública voltou a funcionar, mas algo ficou desalinhado nos bastidores. Democratas e republicanos circulam pelos corredores com aquela segurança performática típica do jogo político, enquanto, internamente, fazem as contas sobre o que realmente ganharam ou deixaram escapar. Thiago de Aragão, analista político Nenhum dos lados sai exatamente derrotado, mas ambos carregam uma sensação incômoda de que o processo expôs fragilidades que eles prefeririam manter fora do alcance do público. Os republicanos foram rápidos em se declarar vitoriosos. A reabertura do governo sem conceder a principal exigência democrata virou manchete conveniente e ajudou a reforçar o discurso de rigor fiscal que a base conservadora quer ouvir. A narrativa é limpa, direta e eficiente. Só que a política raramente se resume ao texto final da lei. O país sentiu, de forma concreta, o impacto da paralisação. Voos atrasados, serviços essenciais interrompidos, pagamentos represados, filas, irritação generalizada. A memória coletiva costuma transformar esse tipo de frustração em cobrança. Ao assumirem o protagonismo no desfecho do impasse, os republicanos também assumiram a responsabilidade por fazer a engrenagem voltar a girar com ritmo. Se nas próximas semanas o governo parecer lento, desorganizado ou intermitente, a suposta vitória pode se dissolver em desgaste. Democratas deixaram escapar o timing Do lado democrata, o cenário é quase um espelho invertido. Eles conseguiram manter a discussão sobre saúde no centro da arena, exatamente onde queriam. A retomada imediata de programas sociais reforça a narrativa de que defendem políticas públicas que tocam a vida real das pessoas. Isso tem valor político tangível. Mas internamente o sentimento é de que o partido deixou escapar o timing. Muitos democratas avaliam que poderiam ter mantido a pressão por mais tempo para extrair concessões adicionais em subsídios e políticas de acesso à saúde. O tema continua vivo, mas aquele instante perfeito, raro e precioso em negociações dessa natureza, evaporou. E perder o instante certo, na política americana, costuma custar tão caro quanto perder a própria votação. Por trás dessa disputa de versões está um elemento estrutural que nenhum dos partidos gosta de encarar de frente. A engrenagem orçamentária virou uma sequência permanente de soluções temporárias, gambiarras legislativas e improvisações de última hora. As “resoluções contínuas”, que deveriam ser medidas excepcionais, se transformaram no modus operandi. A cada ciclo, a confiança no processo se desgasta um pouco mais. A economia sente. O setor público sente. A imagem internacional sente. E tudo isso decorre de um modelo que opera mais pelo medo do colapso do que pela capacidade de governar com previsibilidade. "Commodity tempo" Nesse contexto, o que o shutdown realmente ofereceu foi uma commodity curiosa: tempo. Não o tempo produtivo, que permite planejar, negociar e avançar. Mas um tempo artificial, comprado às pressas, que apenas empurra adiante a mesma crise de sempre. É a sensação de que o país vive uma coreografia repetida, onde cada partido dança como se controlasse o ritmo, embora ambos saibam que a música está fora de compasso há anos. Agora, com o governo religando suas funções e o próximo prazo já sinalizando no calendário, democratas e republicanos retomam a arena como se estivessem começando algo novo, quando, na verdade estão prolongando o mesmo impasse. Carregam declarações afiadas, vitórias parciais, promessas de reorganização e um cansaço disfarçado que ninguém admite publicamente. A verdadeira métrica de sucesso não está no ato de reabrir o governo, mas no que serão capazes de entregar até o início do próximo ciclo orçamentário. Se conseguirem estabilizar serviços, avançar em saúde e aprovar o restante do orçamento sem mergulhar o país em outra turbulência, poderão vender a narrativa de que o custo da paralisação valeu a pena. Caso contrário, o episódio será lembrado como mais um capítulo de um sistema que opera no limite da improvisação. Washington, no fim das contas, volta ao modo de sempre: funcional por fora, tenso por dentro, tentando passar ao mundo a impressão de que tudo está sob controle. Mas, dessa vez, com a sensação, cada vez mais difícil de esconder, de que o relógio institucional está avançando mais rápido do que a capacidade política de acompanhá-lo.
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  • Zohran Mamdani chamou atenção pela campanha 'autenticamente populista' à prefeitura de Nova York
    A vitória de um candidato socialista democrático na maior cidade dos EUA chamou a atenção do mundo. Zohran Mamdani indicou uma estratégia populista que não consiste em moderar discursos, mas em mobilizar os invisíveis. Thomás Zicman de Barros, analista político Na última semana, o mundo voltou os olhos para Nova York. A vitória de Zohran Mamdani nas eleições municipais da cidade foi destaque internacional. E o debate não girou apenas em torno das consequências para a política americana, mas também sobre as lições que sua campanha oferece. Há algo de curioso em ver o mundo acompanhar a contagem de votos em bairros de uma cidade estrangeira – por maior que seja. Mamdani virou a coqueluche no Brasil, mas não só. Aqui na França, todos os políticos de esquerda reivindicaram para si a sua mensagem. Há certa sabujice nisso tudo. Afinal, o mundo não dedica esse tipo de atenção a eleições em grandes cidades da América Latina, da Ásia ou mesmo da Europa. Essa exceção se explica, em grande parte, pela figura de Mamdani: um jovem de 34 anos nascido em Uganda, muçulmano e abertamente socialista. E, de fato, talvez haja lições a aprender.  Mobilização em duas frentes  Mamdani chamou atenção pela campanha que conduziu – autenticamente populista. Essa palavra, tão maldita, precisa ser desestigmatizada. Foi justamente nos Estados Unidos que ela surgiu, ainda no século XIX, com o Partido do Povo, uma legenda de esquerda, popular e antirracista que se reivindicava “populista” na luta dos debaixo contra as elites. Mas o populismo não se reduz à oposição entre “povo” e “elites”. Populismo é, antes de tudo, trazer para dentro da política aqueles que estavam fora – os invisíveis. É a capacidade de mobilizar os excluídos. E Mamdani venceu porque soube mobilizar. Essa mobilização ocorreu em duas frentes. Por um lado, o foco em questões que afetam diretamente o bolso dos cidadãos: ele propôs congelar aluguéis para combater o alto custo de vida na cidade, além de expandir o transporte público e o sistema de creches.Por outro, abraçou causas feministas, antirracistas e queer. Em seu discurso de vitória, destacou que deve haver solidariedade entre os trabalhadores precários que não conseguem pagar suas contas e os também precários vítimas de discriminação por gênero ou cor. Tudo isso, é claro, foi amplificado por um uso inteligente das mídias digitais e por uma mobilização impressionante: 90 mil voluntários bateram de porta em porta para registrar eleitores — lembrando que, nos EUA, o voto não é obrigatório. Houve quem dissesse que a vitória de Mamdani foi fácil porque ele concorreu em Nova York, e que esse discurso não funcionaria em outros lugares. Ezra Klein, colunista do The New York Times, argumentou — com seu tom sempre muito razoável, mas enfadonho — que o Partido Democrata deveria usar todas as estratégias disponíveis para vencer: lançar candidatos populistas em regiões progressistas, mas, em estados conservadores, apresentar democratas pró-armas e contra o aborto – quase “trumpistas moderados”. Essa estratégia tem problemas éticos e estratégicos. Eticamente, de que vale vencer uma eleição para barrar a extrema direita se o custo é adotar o discurso da extrema direita, normalizando-o? E, do ponto de vista estratégico, a verdade é que quase nunca se ganha assim. Diante de duas opções conservadoras, o eleitor conservador sempre preferirá o candidato “raiz”. Estratégia populista O que vimos nos últimos anos foi o colapso da ideia do eleitor mediano. Se ainda havia dúvidas, Kamala Harris as dissipou. No ano passado, Harris conduziu uma campanha – curta, é verdade – em que não apenas evitou explorar o fato de ser mulher, negra e asiática, como também não prometeu mudança alguma.Encarnou o establishment político, adotou um discurso conservador para conquistar supostos republicanos “democráticos”, e acreditou que a rejeição a Donald Trump seria suficiente para vencer. De fato, muita gente votou contra Trump, mas, enquanto ele manteve a proporção de votos de 2020, os democratas perderam milhões de eleitores entre um ciclo e outro – pessoas desencantadas da política que simplesmente não viram motivo para ir às urnas. Mamdani mostra que a estratégia populista é, antes de tudo, uma estratégia de mobilização. Sim, Nova York é uma cidade cosmopolita que, nos últimos anos, tende a votar à esquerda. Mas Mamdani produziu a maior mobilização eleitoral da cidade em mais de meio século – e quebrou todos os recordes, com mais de um milhão de votos. Como se diz em inglês, Mamdani foi 'unapologetic': não pediu desculpas, não moderou suas posições, não fez concessões. Recusou-se a ficar na defensiva. Quando uma campanha de difamação o acusou de antissemitismo e de proximidade com grupos muçulmanos extremistas, sua resposta à islamofobia foi gravar um vídeo em árabe. Sobretudo, ele prometeu um mundo – ou, no caso, uma cidade – diferente. Se há algo a aprender com sua vitória, é que o desafio das forças democráticas – não apenas do Partido Democrata americano, mas de todos os que acreditam na democracia ao redor do mundo – é reacender a imaginação.
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  • Trump, a carne argentina e a ira dos pecuaristas americanos
    Em outubro de 2025, o ex-presidente Donald Trump anunciou um plano para aumentar substancialmente a importação de carne da Argentina, com o objetivo de reduzir os preços da carne bovina nos Estados Unidos. A medida, além de econômica, tinha também uma faceta diplomática ao favorecer um país aliado em dificuldades econômicas. No entanto, para muitos pecuaristas americanos, o gesto soou como uma traição à agenda de “América Primeiro” e provocou uma onda de indignação no setor agropecuário. Thiago de Aragão, cientista político, de Washington,  A propalada estratégia consistia em ampliar a cota tarifária para a carne argentina para cerca de 80 000 toneladas por ano, algo em torno de quatro vezes o nível anterior, de modo a permitir que mais carne entrasse nos EUA com tarifas reduzidas. A justificativa apresentada era clara: os preços da carne bovina estavam em níveis recordes, em parte em razão da redução do rebanho nacional e dos custos elevados de produção, e a importação serviria como alívio rápido para o consumidor. Além disso, an Argentina, fragilizada economicamente, era vista por Trump como um parceiro que merecia apoio externo, uma combinação de política doméstica e diplomacia externa.O anúncio gerou reação imediata entre os pecuaristas e suas associações de representação. A National Cattlemen’s Beef Association (NCBA) declarou que ampliar o acesso da carne argentina ao mercado americano “cria caos em momento crítico para os produtores” e “não reduz os preços no supermercado”.  utro grupo relevante, a U.S. Cattlemen’s Association (USCA), alertou que a medida “enfraquece a base da nossa indústria”. O mercado também reagiu: os contratos futuros de gado apresentaram queda acentuada logo após os anúncios, sinalizando apreensão sobre o impacto da política no valor do animal antes do abate. Além da dimensão econômica, a insatisfação alcançou o campo político, com parlamentares de estados pecuaristas, tradicionalmente aliados de Trump, questionando a consistência da iniciativa com o discurso “América Primeiro”. Ceticismo com a estratégia Do ponto de vista econômico, embora a ideia pareça simples, mais importações para “fornecer mais oferta” e reduzir preços, os analistas são céticos quanto à sua eficácia. A Argentina é responsável por cerca de 2% das importações de carne bovina dos Estados Unidos. Por isso, mesmo que suas exportações aumentem significativamente, é pouco provável que isso tenha um impacto relevante nos preços do bife ou do lombo premium no mercado americano. No entanto, importações adicionais podem pressionar o mercado de carne moída, já que muitos cortes importados são magros e destinados à mistura. Para os pecuaristas, o risco é duplo: além de pressão sobre o preço recebido pelo gado, há desalento para reinvestir e recompor um rebanho que ficou comprimido durante anos. Politicamente, a iniciativa revela fissuras na base rural do Partido Republicano e lança dúvidas sobre a fidelidade de certas políticas do Estado à defesa dos produtores domésticos. O risco para Trump é perder credibilidade entre aqueles que, até então, lhe davam suporte incondicional. Controvérsia A controvérsia envolvendo a carne argentina expõe de forma clara a tensão entre manter os preços baixos para o consumidor, defender a produção doméstica e conduzir política externa de forma estratégica. Não há vilões claros: consumidores buscam alívio, produtores querem renda justa, governo tenta mostrar ação. Mas a elegância da boa política está justamente em conciliar essas demandas. Aqui, o que se vê é uma tentativa de atalho que pode sair caro, um gesto de curto prazo que desvia prioridades estruturais e compromete suporte num setor sensível. O episódio serve de lembrete de que segurança alimentar e prosperidade rural caminham lado a lado: negligenciar um em favor do outro é convite à frustração e à instabilidade.
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Acerca de O Mundo Agora

Crônica semanal de geopolítica internacional. Os fatos que são notícia no mundo analisados por Thiago de Aragão, direto dos Estados Unidos, e Thomás Zicman de Barros, da Europa. 
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